sábado, 8 de novembro de 2014

As vidas que cabem num dia


A rotina é uma coisa tramada. Ela transforma os hábitos em clausura e ao mesmo tempo separa a nossa vida das vidas que estão 'lá fora', no 'outro' mundo.
Basta sair um pouco da rotina, quebrá-la ou rachá-la, apenas, para se ter uma maior noção que a vida é maior do que aquela em que cabe a nossa própria vida. 
Não é preciso muito. Ás vezes ir pelas escadas, atravessar a rua, mudar de passeio, mudar de estrada, de banco (ou de cadeira), de linha de metro, de jardim, de café ou de esplanada, de uma divisão da casa para outra. Ou sair porta fora, atravessar um continente, um país, um mar ou apenas um rio. Diminuir os passos que damos ou até mesmo parar. Ou correr, saltar, brincar a um jogo que nunca brincámos. Meter conversa com alguém com quem nos cruzamos todos os dias mas com quem nunca falamos. 

Hoje a reunião de trabalho é num sítio diferente. Não vou para um escritório. Estarei em vários sitos, logo, em vários 'escritórios'. Saio numa estação de metro que costuma ser apenas de passagem.  Naquela saída, enquanto aguardo pelo colega e amigo de trabalho, em menos de dez minutos passam por mim varias vidas: a da mulher que trouxe de carro o marido até ali (despediram-se com um beijo e uma troca de olhares cúmplices, que diziam qualquer coisa que não consegui traduzir para a minha linguagem - é só deles e não tem de ser de mais ninguém), do rapaz nitidamente nervoso a tirar a carta de condução, na mulher jovem, bem vestida, que vai para o trabalho (imagino eu) na sua bicicleta (muda descontraidamente de faixa para se desviar de um carro estacionado, metendo-se à frente de outros carros, que lhe buzinam, mas ela despreocupadamente segue o seu caminho como se nada fosse), as crianças que àquela hora da manhã já brincam no parque do meio da grande alameda verdejante da cidade. 

O parque infantil recebe as crianças com os mesmos raios de sol que, ali bem perto, eu também recebo. O parque infantil tem o chão de areia. Reparo num sinal à entrada que indica que a areia é higienizada regularmente. A cidade pensa em tudo. Outro sinal ao lado tem uma série de números de telefone para alguma urgência, de qualquer tipo: médica (112), municipal (divisão da Câmara responsável por aquele equipamento) e até da ASAE. Estará a areia tão limpa que se pode cozinhar nela? 

A primeira paragem para uma inicial parte da reunião é numa mesa de café no Parque das Nações, onde um de nós toma um pequeno almoço já tardio (o segundo, talvez). Dali seguimos para Marvila, onde vou encontrar uma igreja do século XVII. Está fechada. O segurança diz que a chave está com uma senhora, dona de uma mercearia ali em frente. Fomos ter com ela e lá a conseguimos convencer que somos pessoas sérias e que não vamos demorar muito. Descobrimos que a senhora é de Viseu e ainda acabamos por lhe comprar umas ameixas, depois de eu conhecer o rico interior barroco do edifício religioso, uma relíquia da cidade de Lisboa. Talha dourada, azulejos, quadros, mármore a formar intrincados padrões quer no chão quer nas paredes, tudo a condizer com o estilo artístico.  Algumas coisas a precisar de urgente restauro (um dos altares está mesmo retirado para esse efeito).

A reunião continua para o local onde era suposto haver outra pequena reunião. Como não se agendou e é tudo muito (demasiado) informal, batemos com o nariz na porta e a manhã de trabalho dá-se por concluída. Devia seguir para o ginásio, mas pego antes qualquer coisa para comer e vou para o anfiteatro da Gulbenkian saborear o meu manjar, enquanto me inspiro para escrever e enquanto inspiro o ar daquele pequeno paraíso verdejante também no centro da cidade. O mundo tão perto mas tão longe dali. Vou ao CAM, decido. O Centro de Arte Moderna é a próxima paragem e faço uma pausa na escrita.
Ponho na porta deste post um
VOLTO JÁ

***

Mente exercitada. Falta o corpo. Vou e fui.
A tarde está passada, mas não o dia, que ainda tem trabalho pela frente. 
Muito trabalho, mas muito inspirado.



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