terça-feira, 18 de novembro de 2014

Um dia na vida do ca(ga)nito Xico



Olá. Eu sou um cão. O meu nome é Xico. Sem diminutivos: nem “Xi”, nem “Co”. Vivo com o meu dono, o Vascoal. É mesmo assim que ele se chama (coitado) o meu dono: Vascoal, nem Vasco, nem Pascoal.

E porque é que ele se chama assim? Não sei, nunca e disseram. Aliás, os humanos poucas conversas inteligíveis têm para comigo. Resumem-se a frases imperativas como “deita”, “vai”, “vem cá”, “lindo menino” (provavelmente a maior das verdades que eles dizem, quando dizem alguma coisa “comestível”) e pouco mais (se estas expressões são familiares ao caro leitor, não é por acaso: é porque sabe que é mesmo assim).

Como eu dizia, eu não “sei” porque é que o meu dono se chama Vascoal, mas desconfio; porque ouço muitas conversas que ele tem com as outras pessoas. Desconfio que ele assim se chama porque a mãe dele gostava que ele se chamasse Vasco e o pai gostava que ele se chamasse Pascoal. A criança não podia estar à espera de nome para ser chamada e quando a discussão no registo civil, para que os adultos se decidissem “a bem”, não atava nem desatava – os humanos não gostam nada que não chamem os bois pelos nomes e o senhor funcionário resolveu dividir o mal pela raiz do bem e da sensatez, e fez com um tal Rei Salomão (que queria cortar uma criança ao meio). E eu pergunto-me:
- Como é que um cão pode saber estas coisas? 
Bem, isso é outra história, para outro conto. Chama-se a isto, aguçar a curiosidade do leitor, puro Marketing, adaptado aos caninos. Quando os pais repararam no engano, pensando que ambos tinham levado a sua avante, e viram que as letras no nome não elas as letras pelas quais teriam “lutado”, era tarde de mais e os registos centrais não podiam alterar.

Adiante, que se faz tarde e tenho muito pouco tempo. Pelas contas que os humanos decidiram fazer por nós, apesar de eu ter nascido há 6 anos do calendário ocidental, já estou perto da meia idade.

Vascoal ficou, como se o homem tivesse nascido numa terra (ou noutro mundo) onde trocam os “pês” pelos “vês”, como noutros sítios deste país... ouvi dizer. O nome faz-me rir.

Como dizia, sou um cão e como qualquer outro animal, tenho os meus caprichos. Sou pachorrento mas atento, paciente mas decidido, de cor preta mas com alma cândida, sensível mas não “flôr”, fiel (como não podia deixar de ser; não posso contrariar o mau próprio adn) mas não destemido. Sei que há cães a quem gostam de chamar “espertos” pelas proezas que fazem. E eu digo:
«- Ó Lassie, se és assim tão boa, porque é que não foste para o circo? Ah, tu és mais salvar pessoas, está bem. Tu lá sabes, mas estás a perder-te. A saltar arcos em chamas (ou até apagados) é que tu estavas bem: tinhas uma vida mais calminha... que Hollywood dá cabo até das vidas dos cães com as melhores das intenções
Eu tenho os olhos pretos como caganitas de ovelhas. 
Que me perdoe o leitor a linguagem, mas estas são as minhas referências. Não cresci no meio de olivais e por isso não sei como são aquelas coisas a que chamam azeitonas.

Nasci, dizem, numa aldeia, num norte – lá está, a vegetação é outra. Mas um cão vegeta em qualquer lugar... de repente perdi o norte ao meu mundo e vim parar à cidade. A mim, esta cidade onde dizem que moro, parece-me uma aldeia, porque é pequeno o espaço onde me deixam (a) viver.

O Vascoal (hi, hi...)... deixa-me preso nesta varanda todos os dias quando sai para o trabalho. Não é que me importe muito. Neste tempo todo de sossego, tenho tempo para contemplar a minha vida... e a dos outros.

Quem disse que a vida de um cão é pera doce, é porque nunca lhe descascou a pele. A minha vida não é fácil, mas não posso desejar outra. Acho que a de alguns humanos é muito mais cão que a minha!

Acordei. Não sei que horas são. Não sei o que são horas – sei apenas que as horas são muito tempo umas vezes e outras não são tempo nenhum... são minutos que passam mais devagar ou mais depressa, consoante der mais jeito a quem os conta. Parece-me que é cedo, pelo olhar do Vascoal. É cedo para ele, não para mim, que acordei há muito e nem sei se é dia se é noite. Luz não há certamente, porque ele gosta assim. Para dormir até mais tarde. Para quê, não sei. Sei apenas que a minha bexiga dá horas e minutos há demasiado tempo, mas eu contenho.

Com os meus olhos “caganitos” vejo o mundo todo, desde o sítio onde nasci, até aqui onde adormeço todos os dias. Vejo-o com olhos de ver, com desinteresse aparente.

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Nota do transmissor da história do Xico:
Este é apenas o primeiro de vários episódios de uma série de três volumes editados e que estão a fazer enorme sucesso. Está na calha a adaptação ao cinema mas ainda não se sabe quem vai interpretar o papel do protagonista.
Esta história tem uma moral:
Não abandonem os vosso animais: eles podem vir a escrever livros que se tornarão best sellers e vocês podem vir a ganhar muito dinheiro.

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