quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Artes, mitos e amores metamorfoseiam-se


A arte dos/nos sentimentos
É tão grande e intemporal o fascínio pela obra de Ovídio (Públio Ovídio Nasão, 43 a.C. – 17 d. C.), que o tema clássico da mitologia na sua obra Metamorfoses, após tantos séculos, continua a influenciar ou a inspirar muitas formas de arte, na cultura do Ocidente.
Ovídio foi um confesso «grande amoroso», que «amava todas as mulheres» (casou-se duas vezes, e duas vezes se divorciou, tendo sido a sua terceira mulher o grande amor do seu «coração apaixonado»), como Martin Caret descreve no prefácio ao livro A Arte de Amar (2005:14). Dono de um espírito “inquieto” (como o foi a sua vida, de viagens e atribulações diversas), para Paratore «demonstra a enfatuação mundana que dele se apodera e que jamais se lhe apagará» (Paratore:8). As belas formas e a alma feminina seriam a sua incontornável inspiração para muitos dos episódios dos 15 livros que constituem a obra Metamorfoses, em que o amor é um “aventuroso” protagonista.
«E tu, que só pela morte, oh!, poderias de mim separar-te, nem pela morte te separarás!» - Ovídio, in Livro IV das Metamorfoses, v.153 – Tisbe a Píramo
A história de Píramo tem associada uma história de amor, tema a que se dedicou o autor e que faz parte, como tantas outras, das histórias de amor e aventura da mitologia (Hamilton, 1983:143 ss). O caso do amor proibido (pelos pais) e de desfecho trágico da história (que irei retomar mais à frente) de Píramo e Tisbe, é descrito no Livro IV da obra em estudo, e foi abordado também por William Shakespeare (1564-1616), em Romeu e Julieta (1594-1595).

No amor não correspondido de Apolo (que por culpa de Cupido, e numa espécie de castigo por Apolo ter gozado com ele, o faz apaixonar-se) por Dafne: esta, ao ver-se perseguida pelo deus, e nunca tendo mostrado qualquer interesse no amor ou no casamento (odiava «as tochas nupciais como se fora um crime» - Ovídio, 2006: Livro I, v.484), enquanto ainda corre, já cansada da perseguição, pede em prece socorro a seu pai, Peneu, o deus-rio, que a livre da sua aparência. É, então, transformada num loureiro e quando Apolo se abeira desta, já árvore, ainda consegue sentir o coração de Dafne a bater e abraça-a dizendo-lhe: «Já que não podes ser minha mulher, serás certamente a minha árvore.» (Ovídio: Livro I, v. 557) É também grande o amor da feiticeira Medeia e Jasão, ao ponto de ela ficar ruborizada à simples visão deste. Mas o poder dos seus feitiços é igualmente grandioso e usa-os em seu proveito para atingir os seus, muitas vezes pérfidos, objectivos. (Ovídio: Livro VII)

A magnífica obra Ovídio não mostra apenas o sentimento do amor (incompreendido, difícil, impossível, trágico). Outros sentimentos “mundanos”, não menos trágicos, são experienciados. A ira e o poder dos deuses, verifica-se directamente nas transformações (metamorfoses) que estes provocam nos humanos: animais, aves ou plantas (como já descrevi). Ovídio relata, por exemplo, o desejo de vingança quando a deusa Diana (deusa da caça) transforma o caçador Actéon em veado. Este, que da caça descansava, “nada” terá feito “senão” surpreender, sem querer, a virginal deusa que nua se banhava. Actéon é depois devorado pelos seus próprios cães de caça, criando aqui uma ironia trágica que mostra a complexidade da génese do autor. «Consta que a ira de Diana, a deusa da aljava, só foi saciada pelo finar daquela vida por mil feridas.» (Ovídio: Livro III, v.253).

A arte da intervenção divina
Ovídio teve o “condão”, com a sua «imaginação desenfreada e incontida» (Paratore:8) de corresponder histórias a mitos em que, mesmo sendo irreais e/ou ilógicos, podemos perfeita e naturalmente acreditar. À de Píramo e Tisbe, já introduzida anteriormente, está relacionado, por exemplo, o mito da amoreira: na obra este fruto seria inicialmente branco, mas o sangue salpicado pela terrível morte (suicídio) dos dois amantes terá provocado a mudança de cor para o negro/sangue que as amoras actualmente têm. Maria Helena da Rocha Pereira afirma que «[...] o interesse pelo mito é hoje enorme, [...] pela sua multifacetada aplicação literária (muito explorada nos nossos dias)[...]» (Pereira:298 e ss.), referindo ainda a teoria proposta pelo especialista W. Burkert, segundo o qual «[...] o mito é um conto tradicional aplicado, com referência secundária a algo de importância colectiva [...] não pertence ao reino do inconsciente, mas ao da linguagem». Os fenómenos «são os da vida social, do ritual religioso, do medo dos fenómenos da Natureza, da experiência da doença; e outros problemas gerais da sociedade humana.» (idem:302)

Apesar das personagens serem seres imaginários, situam-se, na narração, no mundo real. Por isso comungam connosco (mortais  leitores) sentimentos que nos são familiares e com elas criamos empatia.

A arte de narrar, transformar e fascinar
Mestre em encadear sucessivamente as cenas descritas em cada mito, estes uns após os outros ou intercalados, Ovídio “inovou” pela apresentação de novos ângulos de visão e mudanças bruscas, uma técnica hábil com a qual, actualmente, estamos familiarizados no cinema, como nos mostra Domingos Lucas na introdução à referida obra (Ovídio:12) ou Ana Paula Rebelo Correia, no seu artigo As Metamorfoses de Ovídio na azulejaria barroca portuguesa. O próprio poema, tal como as suas personagens, também se vai «“transformando”, nuns casos por analogia temática, noutros por contraste». (Alberto:24)

A arte de influenciar, inspirar e eternizar
O texto de Ovídio passa-nos pelos olhos como se de imagens se tratasse, com grande riqueza de detalhe e complexidade. Os seus versos fluem e enchem-nos de emoções várias. Deve ter sido nesta sensação em que muitos artistas, depois dele, se inspiraram para as suas criações. Paulo Farmhouse Alberto afirma mesmo que «nenhuma outra obra da Antiguidade Clássica exerceu maior influência na cultura europeia.» (Alberto:19). Essa influência ficou registada na literatura, na pintura e em outras artes (“veículos” através dos quais os seus autores “narram” a história - ou episódios desta - do seu ponto de vista), sendo flagrante, em algumas delas, uma “imitação” (ou recriação?), sem que isso retire aos seus autores qualquer mérito criativo.

Na literatura temos, por exemplo, Os Lusíadas (1572), do ilustre e nosso tão conhecido poeta Luís Vaz de Camões (c. 1524 – 1580). Como nas Metamorfoses, também n’Os Lusíadas, segundo António José Saraiva, nas palavras de António Afonso Borregana, «os deuses intervêm (..) como autênticas personagens da narrativa, com vida própria». (Borregana: 17), criando uma intriga cuja estrutura cria a unidade da obra. Entre outros, na “viagem/epopeia” de Camões protagonizam Vénus, Cupido, Baco, Ninfas, Zéfiro, Flora, ou Actéon. No canto IX, da “Ilha dos Amores”, o episódio de Actéon e Diana (já referido) é descrito n’“As Ninfas no Banho”, que Ovídio narrara no Livro III das Metamorfoses.

Fig. 1 - Píramo e Tisbe (1520); Niklaus Manuel (1484-1530); 
Basel's Kunstmuseum;

Na pintura temos, por exemplo, as interpretações de alguns episódios das Metamorfoses, pelos pintores Niklaus Manuel (1484-1530), Francesco Albane (1578 – 1660) e Nöel-Nicolas Coypel (1690-1734). Na obra de Niklaus, “Píramo e Tisbe” (Fig. 1), do século XVI (1520), podemos ver que Tisbe, pensando que Píramo está morto, ajusta «[...] a espada debaixo do peito, lançou-se sobre o ferro, tépido ainda da outra morte. [...]» (Ovídio, 2006: Livro IV, v. 163). Em “Diana e Actéon” (Fig.2), uma obra do século seguinte (1625), Albane pinta o momento em que as ninfas tentam tapar a virginal deusa dos olhos de Actéon, que foge, sendo já visível o seu estado de transformação em veado (resultado da fúria desta, apesar da aparente postura cândida) (episódio descrito no Livro III). Já no século XVIII, em 1726-1727, Coypel abordou o tema de “Europa e Júpiter” (Fig.3). O pormenor mostrado nesta figura, mostra Europa montada no touro, que será Júpiter disfarçado, que a terá seduzido e raptado (Livro II – no livro seguinte Agenor, desconhecendo o rapto, manda o seu filho, Cadmo, irmão de Europa, procurá-la).

Fig. 2 - Diana e Actéon (1625); Francesco Albani (1578 – 1660);
Gemäldegalerie,  Dresden -  (Alemanha);

Os exemplos noutras artes (escultura, dança, teatro, cinema, etc) sucedem-se, inúmeros, até hoje.
Mas porque nos fascina e “prende”, ainda hoje, a narração da obra de Ovídio? Será pela empatia pelos seus personagens, os seus amores, desamores e tragédias? Será pelo misticismo ou pela técnica da escrita? Acredito que seja por tudo isto e também por ser um clássico que nos faz comover, deleitar e sonhar.
«Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para criar uma multidão de belos e magníficos discursos) e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo a minha paixão).» - Roland Barthes  
Fig. 3 – Europa e Júpiter (1726-1727);
Nöel-Nicolas Coypel (1690 – 1734)


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALBERTO, Paulo Farmhouse – “Introdução” à tradução das Metamorfoses de Ovídio (Livros Cotovia, Lisboa, 2007);
BORREGANA, António Afonso – Análise de Os Lusíadas (Edição do Autor, Setúbal, 1989); 
HAMILTON, Edith – A Mitologia (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983);
OVÍDIO – As Metamorfoses – Volume 1 (Tradução de Domingos Lucas, Edições Nova Vega, 2006);
OVÍDIO – A Arte de Amar (Tradução de Pietro Nassetti, prefácio de Martin Caret, Editora Martin Caret, São Paulo, 2005, in http://www.scribd.com/doc/7030403/A-Arte-de-Amar-Ovidio);
PARATORE, Ettore – História da Literatura Latina (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987);
PEREIRA, Maria helena da Rocha – Estudos de História da Cultura Clássica, I Volume (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006);

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